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A vida em preto e branco: história de vida de uma acromata

lga Barbosa da Silva Pereira : “O acromata tem baixa acuidade visual, não vê bem os detalhes e não enxerga à longa distância”

Se você vê a vida colorida, dê graças a Deus. Há pessoas que não têm essa bênção por serem cegas, ou por terem uma deficiência na visão que as impede de ver as cores, como a acromatopsia. Doença rara na retina que faz com que o acromata enxergue apenas preto, branco e tons de cinza, passando do cinza claro ao cinza escuro. A acromatopsia atinge uma em cada 33 mil pessoas e para saber como é a vida de quem tem essa deficiência o Portal Medicina e Saúde entrevistou a acromata Olga Barbosa da Silva Pereira. Ela é mineira, casada, formada em Comunicação Social (Relações Públicas) pela PUC-MG, servidora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, onde atua na área de eventos e programas institucionais.

Primeiramente, explique melhor o que é acromatopsia?

A Acromatopsia é uma deficiência visual causada pela falta de cones na retina (fotorreceptores) que faz com que o acromata não enxergue as cores. O acromata vê o mundo em preto e branco e em tons de cinza. Tem baixa visão, fotofobia intensa, ou seja, muita dificuldade na luz forte e na luz solar. Pode ter também tremor nos olhos, o chamado nistagmo.

Ela é hereditária?

Sim, é uma deficiência congênita, devido a um gene recessivo, transmitido pelos pais. Na minha casa somos oito filhos. Duas acromatas, eu e uma irmã mais velha do que eu. Os outros, com certeza, são portadores do gene recessivo da acromatopsia. Nós não temos o gene dominante, como os outros irmãos.

Como seus pais lidaram com essa situação?

Foi muito complicado. Quando minha irmã era bem pequena, meus pais perceberam que ela tinha um grave problema na visão. Na época, observaram a dificuldade que ela apresentava na claridade e enxergava muito mal. Então a levaram a um grande oftalmologista, o melhor na época, Dr. Hilton Rocha, em Belo Horizonte. Mas naquele tempo não existia diagnóstico para esta doença. Ele vendo a dificuldade dela e não tendo um diagnóstico preciso, disse que a minha irmã não poderia estudar, talvez estudar até o quarto ano primário, o que corresponde hoje ao quarto ano do ensino fundamental. Minha mãe chorou muito. Mas, ao revelar ao meu pai esse prognóstico, ele, que tinha muita fé, não aceitou o limite imposto pela ciência. E os dois decidiram criar minha irmã para ser uma vencedora. E assim aconteceu. Ela fez faculdade de Serviço Social e tornou-se uma excelente Assistente Social. Depois de três anos, quando eu nasci, seguiram os mesmos passos na minha criação. Fiz faculdade de Comunicação Social.

Qual a incidência da doença?

Ela acomete uma a cada 33 mil pessoas. Tanto homens quanto mulheres. Não é como o daltonismo, que tem mais incidência em homens. Por ser uma doença genética, a criança já nasce só enxergando preto e branco e tons de cinza, e com as demais limitações. Eu me lembro de uma passagem quando eu tinha quatro anos de idade, uma das minhas primas me perguntou: “Por que você não sabe as cores?” Eu disse: “Por que eu sou pequena e ainda não aprendi”. Minha irmã, que tinha sete anos, falou: “Não, não é por isso não. É por que nós temos um problema de vista e por isso não enxergamos as cores”. Foi assim que eu fiquei sabendo que era uma acromata.

A doença é progressiva?

Graças a Deus, não. Ao contrário de várias outras deficiências na visão que caminham para a cegueira, a acromatopsia não é progressiva. Uma visão normal é classificada 20/20. A minha é 20/150 e assim vou permanecer. Agradeço muito a Deus.

Como essa doença é diagnosticada?

Através dos sintomas já citados. Na criança muito nova e que ainda não fala, o médico percebe sua dificuldade na luz, o tremor nos olhos e a dificuldade para enxergar. Realiza ainda um exame – a eletroretinografia – que avalia a retina para identificar a falta ou qualquer anomalia no funcionamento dos cones. A falta deles ou cones não funcionais é que faz com que a pessoa seja diagnosticada com acromatopsia.

Como é a visão de um acromata?

O acromata tem baixa acuidade visual. Não vê bem os detalhes e não enxerga à longa distância. Por exemplo, eu não consigo dirigir. E não existe correção com auxílios ópticos. Uma pessoa míope corrige a miopia com o uso dos óculos de grau. No caso do acromata, isso é impossível, pelo menos atualmente. Não existe auxílio óptico que corrija a nossa visão. Eu não consigo ter uma visão 100% nem com o uso de óculos ou lentes de contato. Eu não consigo ler as placas de trânsito, seguir o fluxo. Eu não dirijo não apenas por causa da falta da visão de cores. Elas seriam o menor problema porque eu poderia decorar as posições das luzes. No computador ou para a leitura de um livro, temos que chegar bem perto. E no sol, sem óculos escuros, não conseguimos abrir os olhos. Não enxergamos praticamente nada. Hoje, eu uso uma lente de contato escura e os óculos escuros. Aí fica tudo maravilhoso!

Como você identifica as cores.

Bem, eu não as identifico. Eu as decoro. No meu guarda-roupa eu sei todas as cores de todas as minhas roupas. Tudo decorado. Eu também sei de cor as combinações das cores. Assim, quando pego uma blusa, eu sei que ela vai combinar ou não com aquela calça, com um determinado colar, com um sapato. Eu tenho noção das cores, sabe? Outro dia eu conversei com a minha irmã sobre isso. A gente tem uma noção do que são as cores. Quando dou aula de yoga, por exemplo, eu digo: “Imagine um triângulo azul no centro de sua testa”. Eu consigo imaginar essa luz azul. Mas se alguém me mostrar um objeto azul, eu não vou saber identifica-lo como azul. Eu posso até dizer que ele não é vermelho, não é preto, não é marrom. Por que essas cores que falei são muito escuras para mim. O tom de cinza é bem escuro.

Além de não dirigir, quais outras limitações físicas que essa doença impõe ao acromata?

Eu não posso fazer qualquer trabalho que dependa de cores ou que exija uma boa acuidade visual, uma boa visão de detalhes. Por isso eu e minha irmã escolhemos a área de Ciências Humana. Ela não depende de uma boa visão, uma visão de detalhes, e, sim de outro tipo de visão, uma visão interior, uma visão filosófica. Certa vez me submeti a um teste para trabalhar na área de Comunicação de uma fábrica. Um dos médicos da equipe não aprovou o meu exame. Já, um outro médico disse: “Ela não precisa ter visão 100%, ela não vai trabalhar no torno mecânico. Pra trabalhar na área de Comunicação, ela precisa ter outro tipo de visão.” O acromata tem que descobrir a área que consegue trabalhar, e há muitas. No mais, acho que as limitações a gente é que aceita e se impõe. Cada pessoa se limita ou não se limita. Hoje, eu não me limito a quase nada.

O que mais te aflige: não enxergar as cores ou a deficiência visual de grau e fotofobia?

Com certeza o que mais me aflige é a baixa visão e, principalmente, a claridade. Eu digo por mim e já conversei também com a minha irmã: a questão das cores não nos aflige. Na verdade, o acromata não perdeu a visão das cores. Ele nunca as viu. Então, ele se adapta. Eu olho para as coisas, para o céu, para o pôr do sol, para o mar e acho tudo muito lindo. Já a deficiência visual me atrapalha. Quando trabalho no computador, tenho dificuldade para enxergar, identificar as coisas, letras pequenas etc. O que me cansa muito. E a claridade era um sofrimento até eu descobrir a minha lente de contato escura. Após pesquisar muito e fazer contato com laboratórios, descobri essa lente escura. Ela não existia, pelo menos no Brasil. Hoje, eu tenho total tranquilidade, saio à rua, cumprimento as pessoas, não enxergo de longe, mas me viro bem.

Como é o tratamento de um acromata?

A acromatopsia não tem tratamento ainda. As pesquisas estão avançando e estamos torcendo para que cheguem a um bom resultado. Mas temos como minimizar os sintomas. Eu tenho inúmeros auxílios ópticos, por exemplo, para ler a legenda de um filme na televisão. Também uso lupa, aparelho que fala as cores, a lente de contato marrom, quase preta, óculos escuros com lente filtrante, entre outros. E mais os óculos de grau, pois, além de acromata, sou míope.

Como são esses óculos escuros que você criou?

Na verdade, é uma lente de contato escura. Eu sempre pesquisei muito e quando conheci um grupo de acromatas dos Estados Unidos, conversei com acromatas do mundo inteiro, vi o pessoal falando de uma lente de contato vermelha que usavam quando saíam na rua. Aí, soube de uma acromata argentina que usava uma lente dessas para colorir os olhos. Conversei com ela e entrei em contato com um laboratório do Rio Grande do Sul. Eles tinham uma lente para pessoas com problemas estéticos na córnea ou na íris, mas nenhuma lente para acromata. A minha oftalmologista Dra. Luciane Fernandes apresentou o meu caso para eles e, logo depois, enviaram uma lente, que não serviu por ser muito clara para mim. Depois me enviaram uma lente totalmente preta, e com ela eu não enxerguei nada. Assim, a Dra. Luciene teve a ideia de criar uma lente bem escura, com o miolo âmbar, no lugar da pupila e, então, tudo aconteceu! Foi uma maravilha. É uma vida antes e depois dessa lente. Ela me permite total segurança na claridade. Antes, para participar de uma reunião, a luz que entrava pelas janelas me cegava a tal ponto que tinha que usar óculos escuros. Com a nova lente isso não é mais problema. Essa lente é resultado da minha parceria com a minha oftalmologista, Dra. Luciene Fernandes que já a apresentou em inúmeros congressos, inclusive, internacionais.

Como você lida com essa situação?

Hoje lido muito bem. Sou muito tranquila com isso, mas nem sempre foi assim. Quando criança, eu tinha muita dificuldade, principalmente na nossa época, já que nem existiam óculos escuros para crianças. Hoje, os acromatinhas todos usam óculos escuros, podem brincar no sol, no parque etc. Quando adolescente, eu ficava muito constrangida. É quando a gente vê que é diferente das outras pessoas. Penso que todos que têm uma deficiência sentem-se assim, até haver a aceitação. Quando a gente aceita, aí compreendemos como uma missão, uma benção e não mais uma coisa ruim na vida da gente.

A acromatopsia atinge toda a família, não é mesmo?

Sim, atinge a todos. Como qualquer outra deficiência, a família deve saber lidar, inclusive não superprotegendo nem limitando o deficiente. Na minha casa, somos duas acromatas: eu e minha irmã Fátima. Entre nós duas temos um irmão que tem visão normal. Já me perguntei quando era mais nova: por que eu? Já vi muito isso, pessoas com doenças graves ou terminais se perguntarem: “Por que eu?” Na minha vida, pelo menos foi assim, até eu compreender que veio para mim e não tem porquê.

A partir daí, quando senti essa aceitação, passei a tratar o problema com mais naturalidade, a contar e a comentar com as pessoas sem constrangimento. Depois, passei a encarar a acromatopsia com muito humor, inclusive no instagram, com as histórias da Piba, a menina acromata, com a live, no meu ambiente de trabalho. Hoje, eu lido muito bem com essa situação. Eu a encaro como uma missão. Agradeço muito a Deus porque hoje eu reconheço que têm pessoas em situação pior que a minha, pessoas cegas. Por isso, já fui voluntária para ler livros para deficientes visuais, já gravei livros para cegos e apostilhas para pessoas que precisavam estudar. Graças a Deus, eu tenho conseguido ajudar muitas pessoas, conversar com os pais aflitos e angustiados com o futuro dos seus filhos. Então, para mim, hoje isso é muito tranquilo.

Você conhece outras pessoas que são acromatas?

Várias. Depois que li o livro A ilha dos Daltônicos de Oliver Sacks, eu entrei em uma rede mundial de acromatas. Foi uma maravilha. Conversei com acromatas do mundo inteiro: África, Irlanda, USA, França. Encontrei inúmeras pessoas iguais a mim! Por que até então eu só conhecia a minha irmã. A gente se sentia uma ilha. Quando entrei nesse movimento fiquei muito feliz por que fiquei sabendo como os outros acromatas pensavam, agiam, que óculos usavam. Hoje temos um grupo de whatsapp. Sou, inclusive, uma das administradoras, junto com a Simone, do Rio Grande do Sul. Temos participantes de Fortaleza, do Rio Grande do Sul, Goiás e estamos procurando outros para compor nosso grupo. É um grupo muito legal. A gente troca muita ideia. É um grupo de amparo. Eu e a Simone, que também já superou o problema, conversamos com os participantes do grupo na tentativa de colaborar, principalmente com os pais de acromatas que se sentem inseguros quanto ao futuro do filho. E a gente pode ajuda-los a enxergarem um futuro melhor. Vai depender dos pais e do próprio acromata. O futuro é sombrio? Não, não é. Não é incapacitante. A gente vive como qualquer outra pessoa normal.

Há algum outro movimento de apoio para quem tem acromatopsia?

Não, acho que não. Acho que o que tem é esse nosso grupo de whatsapp. A gente pode ajudar e quer ajudar muito, mas eu não conheço nenhum outro grupo de apoio aos acromatas. Eu sempre falo que por mais auxílios ópticos que haja hoje em dia, eu sempre respeito muito a dor de uma mãe de um acromata. Minha mãe sofreu muito, chorava muito porque não sabia do futuro das filhas. Então, eu estou pronta para colaborar.

Você já sentiu algum preconceito por ser acromata?

Demais. Quando eu entrei no mercado de trabalho tive muita dificuldade porque naquela época não se falava em deficiência, em aceitar o deficiente, ou alguma coisa nesse sentido. Havia muito preconceito. Apenas para ilustrar, eu havia chegado da Inglaterra e fiz um teste para ser secretária bilingue e passei em primeiro lugar. Com uma semana de trabalho, eles me chamaram e falaram comigo: “Você tem algum problema na visão? Você lê muito de perto! Não poderá continuar aqui no trabalho!” Além de ser demitida, eu ainda fiquei com aquela lacuna na carteira de trabalho, que dificultou a minha vida, porque o próximo empregador sempre queria saber por quê havia ficado apenas uma semana naquele trabalho. Porque havia sido demitida. Em uma outra situação, eu fiz todos os testes e passei em primeiro lugar. Quando fui fazer o exame médico-oftalmológico, disseram que não tinha condições de trabalhar. Então eu me vi no meio dessa limitação imposta externamente, mesmo sabendo que tinha capacidade. Sabia que poderia ter um pouco mais de dificuldade, teria que chegar mais de perto para ler, mas isso não me incapacitava. Além disso, havia as críticas: “Você está lendo muito de perto, você está precisando de óculos novos, por que você está piscando tanto, você está me enxergando?” Era muito preconceito. Hoje, não sinto mais. Se a pessoa fala eu explico, sem problema.

O que a doença te ensinou?

Eu acho que fortaleci valores em mim: primeiro a humildade. A acromatopsia veio para mim e eu não sou melhor do que ninguém. Tenho que lidar da melhor forma possível. E também solidariedade. Mas tem outra coisa muito importante: a noção de limitação. Essa deficiência e principalmente os meus pais me ensinaram muito isso. Quem põe esse limite em nossas vidas? A ciência colocou limite na vida da minha irmã, mas meu pai não aceitou esse limite. Naquele momento ele deu outra sentença. Ele pensou alto para a filha que tinha um problema seríssimo de visão. Eu conheço acromata que não sai de casa, nem com óculos escuros. Acha que não consegue. Conheço acromata que é aposentado por invalidez. Eu aprendi muito sobre isso: o limite que é imposto a uma pessoa que tem deficiência. Aceitá-lo ou não? Acreditar nele ou não? Achar que seu filho pode fazer as coisas com todas as dificuldades, com obstáculos, mas não aceitar essa limitação. Isso foi muito importante em minha vida.

Essa vivência, você a transformou em um livro?

Sim, verdade. A ideia me veio justamente quando fui demitida daquele emprego que mencionei acima. Na época pensei: um dia ainda vou escrever sobre tudo isso. Assim ele nasceu. Comecei a escrever aos poucos, relatando minhas experiências, até que passei no concurso do Tribunal de Justiça e pude contar abertamente sobre o meu problema de vista. Foi uma experiência maravilhosa porque as pessoas com deficiência já eram aceitas. Inclusive, fui muito bem recebida pela psicóloga, que se tornou minha amiga. E ela me perguntou do que eu precisava para trabalhar bem: “Você precisa de contraste? Você precisa que a sala seja mais clara? Que o chão seja demarcado para enxergar bem?” Eu fiquei tão feliz com isso, porque se um dia me demitiram porque eu não conseguia enxergar bem, hoje a instituição está me perguntando o que preciso para trabalhar. Fiquei numa felicidade imensa. Aí finalizei o livro intitulado “Em preto e branco”.

Quando tudo isso aconteceu?

Foi em 2009, quando o lancei em Itambacuri, minha terra natal, dando os primeiros exemplares para meu pai e minha mãe, meus grandes incentivadores e heróis. Neste dia, meu pai completava 90 anos e eu entreguei meu livro a ele como se fosse um troféu. Depois o lancei em Belo Horizonte e, em seguida, em Governador Valadares, onde morei durante algum tempo. Edição totalmente esgotada. Hoje tenho só alguns exemplares para empréstimo. Mas tenho no formato PDF, que posso disponibilizar para quem se interessar.

Ele também foi adaptado para o teatro. Como isso aconteceu?

É verdade. Ele foi adaptado para o teatro por uma excelente profissional da área, Telma Fernandes. O resultado foi magnífico. Uma peça no formato teatro de sombras, maravilhoso, que foi premiada duas vezes e encenada em várias cidades de Minas, do Espírito Santo e do interior de São Paulo. É uma peça lindíssima chamada “Piba – e o mundo em preto e branco”. Hoje, além do livro em PDF, da peça e do grupo que participo, tenho também instagran: @olgabarbosaspereira, onde posto retratos da minha vida, na esperança de continuar ajudando pessoas como eu.

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